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  • Foto do escritorMariana Torres Mazzi

Células CAR-T deixam a zona de conforto – aplicações presentes e futuras além do câncer

Por Mariana Mazzi


Desde o licenciamento para uso clínico em 2017, a terapia com células CAR-T representou uma importante mudança de paradigma no tratamento das neoplasias linfóides B, trazendo oportunidades terapêuticas a pacientes antes considerados incuráveis. Mas embora a maioria das pesquisas com essa tecnologia tenha foco nas patologias oncológicas, uma gama de doenças crônicas, igualmente graves e debilitantes, podem potencialmente se beneficiar da terapia com células CAR-T. Nessa revisão, publicada pelo nosso grupo no número inaugural da revista Immunotherapy Advances, lançada pela sociedade britânica de imunologia, discutimos o potencial da terapia CAR-T fora dos limites na oncologia, com foco nas doenças infecciosas, autoimunes e degenerativas.


No espectro das doenças infecciosas, o HIV/AIDS é sem dúvida a patologia mais estudada, com razoável número de ensaios clínicos. A pandemia de AIDS, iniciada na década de 80, levou a intenso esforço da comunidade científica na descoberta de novos tratamentos para uma doença uniformemente fatal. Na década de 90 surgiram os primeiros antirretrovirais eficazes, e hoje dispomos de uma terapia antirretroviral combinada de alta potência, capaz de suprimir a replicação viral a níveis indetectáveis. Porém, exige uso contínuo por toda vida e não é isenta de efeitos colaterais, por vezes graves. As primeiras tentativas de cura do HIV com células geneticamente modificadas datam do final da década de 90, nos trabalhos pioneiros do Dr. Carl June. Foi utilizado um CAR de primeira geração, que consistia na região extracelular da molécula de CD4, o receptor utilizado pelo vírus para entrada no linfócito T, associada a região transmembrana da cadeia zeta do CD3. Embora segura e factível, essa estratégia falhou em demonstrar benefício clínico.


Desde então o design das células CAR-T foi aprimorado, com a adoção de cadeias co-estimulatórias intracelulares, que amplificam o sinal e aumentam a capacidade proliferativa e persistência dessas células. Além disso, embora o CD4 seja uma molécula atraente como receptor extracelular, pois é uma ligação crítica que tende a se manter conservada mesmo com as altas taxas de mutação do HIV, ele também torna a células CAR-T suscetíveis à infecção lítica. Como estratégias para tornar a célula CAR-T imune à infecção, diversas alternativas estão sendo testadas. Por exemplo, o uso de receptores extracelulares com especificidade para diferentes regiões da gp120, a proteína do envelope viral que se liga ao CD4 e o seu co-receptor CCR5; o knockout do gene CCR5 nas células CAR-T; e a expressão do CAR associada a inibidores de fusão de membrana. Essas estratégias, assim como mecanismos visando eliminação dos reservatórios virais e aumento da persistência das células CAR-T, são detalhadas no artigo.


Outras doenças de alta prevalência mundial e elevado custo social são as infecções crônicas pelos vírus da hepatite B (HBV) e C (HVC). A hepatite crônica viral é uma das principais causas de cirrose hepática e carcinoma hepatocelular. Na ausência de transplante hepático, a cirrose evolui invariavelmente para insuficiência hepática terminal. Estimativas na Organização Mundial da Saúde mostravam em 2015 cerca de 257 milhões de pessoas vivendo com HBV, e 71 milhões de pessoas com HCV. Nesse mesmo período, foram estimados 1,34 milhões de óbitos por complicações relacionadas a essas infecções. Células CAR-T específicas para antígenos de membrana do HCV e HBV foram desenvolvidos e encontram-se em fase pré-clínica.


Os pacientes imunossuprimidos, como aqueles submetidos a tratamentos oncológicos, transplante de órgãos e terapia imunossupressora para doenças autoimunes, tornam-se suscetíveis a infecções oportunistas. Dentre essas, destacam-se o citomegalovírus (CMV), vírus Epstein-Barr (EBV) e fungos com Aspergillus spp, capazes de causar doenças de alta mortalidade nesse grupo. Estratégias de eliminação desses patógenos por células CAR-T, assim como questões envolvendo eficácia e segurança são discutidas na revisão.


No ramo das doenças autoimunes, existe um grande potencial para utilização de células CAR-T, inclusive permitindo vislumbrar possibilidades curativas em doenças crônicas e debilitantes. O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença multissistêmica grave, cuja patogênese envolve depósito de imunocomplexos. A depleção de linfócitos B, utilizando terapia CAR-T anti-CD19, já licenciada para tratamento de neoplasias linfóides B, mostrou-se promissora em modelos murinos de nefrite lúpica. Além disso, as células CAR-T anti-BCMA (em fase acelerada de autorização para tratamento de mieloma múltiplo, outra neoplasia hematológica), estão sendo testados na miastenia gravis, uma doença autoimune onde anticorpos contra junção neuromuscular levam a fraqueza muscular progressiva e incapacitante, e para a qual não há tratamento específico no momento.


Outra estratégia interessante para tratamento de patologias imunológicas seria a construção de linfócitos CAR-T a partir de linfócitos T regulatórios (Treg). Os linfócitos Treg tem a vantagem do efeito localizado, e necessidade de um número pequeno de células para exercer efeito terapêutico. O ponto crítico, no entanto, é sua capacidade de se converter em linfócitos efetores na presença de microambiente inflamatório. Modelos animais de colite autoimune e esclerose múltipla mostraram resultados promissores e também são abordadas no artigo.


O pênfigo vulgar é uma bulose sistêmica grave, caracterizada pela presença de anticorpos contra a desmogleína 3, uma proteína dos desmossomos, estruturas de junção celular fundamentais para a manter a integridade dos epitélios. Nos períodos de atividade de doença, formam-se bolhas na pele e mucosas, e o paciente corre grande risco de morte por infecções secundárias. Ellebrecht et al desenvolveram células CAAR, que expressam um receptor quimérico contra autoanticorpos, capazes de reconhecer e destruir os linfócitos B que reconhecem a desmogleína 3. Essa terapia mostrou-se promissora na fase pré-clínica e no momento encontra-se em fase 1 de testes clínicos.


Finalmente, no âmbito das doenças degenerativas, a possibilidade de reverter a fibrose e senescência utilizando células CAR-T, dois processos até então considerados terminais do ponto de vista clínico, causaram grande entusiasmo no meio científico. No modelo murino de fibrose miocárdica, células CAR-T anti-FAP (proteína de ativação dos fibroblastos) foram capazes de reverter a fibrose e restaurar a função cardíaca após injúria muscular, sem efeitos off-target ou prejuízo para cicatrização de feridas. A senescência é um estado celular caracterizado pela parada de proliferação e um programa secretório capaz de modular o microambiente. Embora importante para prevenir a proliferação de células pré-malignas e cicatrização de tecidos, o acúmulo de células senescentes está ligado a diversas patologias degenerativas e câncer. Amor et al identificaram uPAR (ativador de plasminogênio tipo uroquinase) como uma proteína de membrana com expressão aumentada consistentemente nas células senescentes. Linfócitos CAR-T anti-uPAR de segunda geração foram capazes de eliminar células senescentes in vitro e in vivo, em dois modelos murinos.

O universo de possibilidades da terapia com células CAR-T vem se expandindo significativamente. Uma grande variedade de doenças torna-se passível de terapia imunológica quando há expressão ou superexpressão de antígenos específicos de membrana pelas células associadas à patologia. Em especial, doenças crônicas que necessitam de supressão continuada podem se beneficiar da memória imunológica. A imunoterapia tem potencial de trazer mudanças de paradigmas tão significativos nessas patologias quanto o fez na oncologia, levando a redução significativa da morbimortalidade. As células CAR-T definitivamente têm potencial para serem protagonistas nestas novas abordagens imunoterapêuticas fora do campo oncológico.





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