Um dos maiores obstáculos no tratamento do câncer é a evasão imunológica. De fato, o tumor pode criar mecanismos de resistência que lhe permitem crescer sem ser detectado pelo sistema imunológico, particularmente através de mutações que interferem na capacidade de apresentação de antígeno pelo complexo maior de histocompatibilidade de tipo I (MHC I). O MHC de classe I, presente em todas as células nucleadas do corpo, é responsável pela apresentação de peptídeos derivados da degradação das proteínas celulares às células T. Este processo inclui os peptídeos estranhos ou alterados (antígenos) presentes na células, o que pode auxiliar no desencadeamento de uma resposta imunológica para eliminar o patógeno ou células alteradas no corpo (como as células tumorais). Durante o desenvolvimento dos tumores, podem ocorrer mutações que tornem este processo de apresentação de antígenos pelo MHC I não funcional, impedindo o reconhecimento de antígenos tumorais por células CD8+ T citotóxicas, limitando assim a resposta antitumoral. Entretanto, alguns cânceres, como o adenocarcinoma pancreático ductal (PDAC), que é resistente a muitas imunoterapias, possuem baixa expressão de MHC I na superfície das células tumorais sem que sejam encontradas mutações de MHC I ou nos demais componentes da maquinaria de apresentação de antígeno. Yamamoto et Al [1] abordaram o envolvimento da autofagia na diminuição da expressão de MHC I na superfície das células de PDAC facilitando o escape do sistema imunológico por parte destes tumores.
A autofagia é um processo essencial para a manutenção da homeostase celular, permitindo a reciclagem e degradação de componentes celulares danificados ou inúteis. Este processo começa com a formação do auto-fagossoma, uma vesícula de dupla membrana que internaliza os constituintes celulares a serem degradados. Este processo requer diferentes proteínas, tais como ATGs (gene relacionado à autofagia), LC3s (proteína associada ao microtúbulo) e receptores autofágicos (p62, NBR1, OPTN, NDP52) permitindo o endereçamento de constituintes celulares (carga) dentro do auto-fagossoma. Estes constituintes serão degradados por proteases lisossômicas após a fusão do auto-fagossoma com o lisossoma.
A autofagia pode ter um função protetora antitumoral ao degradar proteínas oncogênicas, mas em alguns casos as células tumorais podem desviar o mecanismo da autofagia em seu próprio benefício.[3] Yamamoto e colegas demonstraram como o mecanismo de autofagia nas células tumorais do PDAC pode visar seletivamente as moléculas de MHC I através do receptor de carga autofágica NBR1, levando à degradação do MHC I no autofagolisossoma. Isto promove a progressão do tumor.
A equipe demonstrou que quando se inibe a autofagia, seja geneticamente através da eliminação do ATG4B (um gene envolvido na autofagia) ou farmacologicamente com o uso de cloroquina (uma substância que inibe as funções lisossômicas), a expressão de MHC I é restaurada na superfície das células PDAC, o que melhora a eliminação de células tumorais por células CD8+ T citotóxicas.
Quando estes inibidores de autofagia foram acoplados a dois inibidores de checkpoint imunológico, anti-PD-1 e anti-CTLA4, os pesquisadores observaram uma melhora na sensibilidade das PDAC à imunoterapia, com uma marcada redução no tamanho do tumor em camundongos tratados com esta dupla terapia.
Assim, o trabalho sugere que a autofagia é um regulador chave da imunogenicidade das células de PDAC, e que modular negativamente a autofagia nestas células melhoraria a eficácia das imunoterapias, tais como os inibidores de checkpoint imunológico. Porém, o efeito pró ou antitumoral da autofagia é específico para cada câncer e também para o estágio de desenvolvimento.[3] Por exemplo, a autofagia através de seus mecanismos de degradação de proteínas danificadas pode evitar o aparecimento de tumores mas, inversamente, sob condições de estresse ambiental como hipóxia ou privação de nutrientes, a autofagia melhora a sobrevivência das células tumorais permitindo a progressão do tumor e a formação de metástases. Estes desfechos podem variar de acordo com o tipo de tumor. Além disso, a cloroquina é um inibidor da autofagia pouco específico. Como sugerido por Kroemer et Al [4], seria interessante desenvolver inibidores mais específicos da autofagia em células tumorais com uso limitado no tempo, a fim de minimizar os efeitos senescentes da inibição da autofagia. Embora existam muitas áreas a serem melhoradas, tais como a focalização específica da autofagia e a determinação do limiar de autofagia para passar de um mecanismo de sobrevivência para a morte de células autofágicas, estimular ou inibir a autofagia, dependendo do contexto, representa uma estratégia terapêutica promissora contra o câncer.
Referências :
[1] Yamamoto, K. et al. Autophagy promotes immune evasion of pancreatic cancer by degrading MHC-I. Nature 581, 100–105 (2020).
[2] Kenific, C. M., Wittmann, T. & Debnath, J. Autophagy in adhesion and migration. J Cell Sci 129, 3685–3693 (2016).
[3] Li, X. et al. Autophagy: A novel mechanism of chemoresistance in cancers. Biomedicine & Pharmacotherapy 119, 109415 (2019).
[4] Kroemer, G. & Zitvogel, L. Seeking Cellular Fitness and Immune Evasion: Autophagy in Pancreatic Carcinoma. Cancer Cell 37, 759–760 (2020).
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