CAR-T anti-BCMA aprovado para tratamento do Mieloma MĂșltiplo
- marianatmazzi
- 19 de mai. de 2021
- 5 min de leitura
Nova imunoterapia aprovada para uso clĂnico traz muitas questĂ”es relacionadas a eficĂĄcia, segurança e custo-efetividade.
No dia 26/03/21 foi anunciada a aprovação pelo FDA do Abcema (idecabtagene-vicleucel ou ide-cel) para o tratamento do mieloma mĂșltiplo recaĂdo ou refratĂĄrio apĂłs 4 ou mais linhas de tratamento. Trata-se da primeira imunoterapia com linfĂłcitos CAR-T anti-BCMA (AntĂgeno de Maturação de CĂ©lulas B) aprovada para uso clĂnico.
O mieloma mĂșltiplo Ă© uma neoplasia caracterizada pela proliferação anĂŽmala de plasmĂłcitos monoclonais, que alĂ©m dos efeitos diretos sobre os tecidos, tambĂ©m produzem uma imunoglobulina clonal ou componente M, associada Ă s lesĂ”es de ĂłrgĂŁos alvo da doença. O mieloma mĂșltiplo Ă© clinicamente definido pela presença de um ou mais dos seguintes eventos: hipercalcemia, insuficiĂȘncia renal, anemia e lesĂ”es lĂticas Ăłsseas. Corresponde a 10% das neoplasias e hematolĂłgicas e cerca de 1% dos cĂąnceres em geral.
Dentre as neoplasias hematolĂłgicas, o mieloma mĂșltiplo certamente Ă© aquela que mais se beneficiou do surgimento e aprovação de novas drogas na Ășltima dĂ©cada. AlĂ©m do corticoide e do melfalano, o arsenal terapĂȘutico hoje Ă© composto por trĂȘs principais grupos de drogas: inibidores de proteassoma, imunomoduladores e anticorpos anti-CD38, que sĂŁo utilizados em combinaçÔes diversas. Ainda assim, o mieloma mĂșltiplo Ă© uma doença incurĂĄvel, caracterizada por perĂodos de remissĂŁo seguidos por recaĂdas a intervalos cada vez mais curtos apĂłs cada esquema terapĂȘutico (ou linha de tratamento). NĂŁo somente as remissĂ”es tendem a ser cada vez mais curtas, mas as sequelas da doença Ăłssea e renal, em especial, afetam sobremaneira a qualidade de vida, por gerar dores crĂŽnicas e necessidade de terapia dialĂtica, respectivamente.
O Abcema Ă© um CAR-T de segunda geração, com a fração extracelular scFv especĂfica anti-BCMA; uma regiĂŁo transmembrana; e uma regiĂŁo intracelular com o domĂnio de ativação CD3-zeta e o domĂnio coestimulatĂłrio 4-1BB. O BCMA Ă© uma proteĂna transmembrana da famĂlia do receptor de TNF (fator de necrose tumoral). Tem papel importante na diferenciação das cĂ©lulas B em plasmĂłcitos e tambĂ©m para sua sobrevivĂȘncia a longo prazo. Ă encontrado apenas nas cĂ©lulas B de memĂłria tardias e plasmĂłcitos, alĂ©m da sua expressĂŁo ser mais elevada nas cĂ©lulas neoplĂĄsicas do que nas cĂ©lulas normais. Por esses motivos, tornou-se um alvo promissor para imunoterapia celular em mieloma.

O estudo pivotal fase II que levou Ă provação do ide-cel, chamado KarMMa, recrutou 127 pacientes com mieloma mĂșltiplo recaĂdo ou refratĂĄrio que jĂĄ haviam recebido pelo menos 4 linhas de tratamento, incluindo um agente imunomodulador, um inibidor de proteassoma e um anticorpo anti-CD38. Dos pacientes recrutados, 100 receberam a infusĂŁo do CAR-T, em doses de 300 a 460 x 10e6 cĂ©lulas. Entre pacientes que receberam as cĂ©lulas, a taxa de resposta global foi de 72%, com 28% de resposta completa estrita (sCR), ou seja, ausĂȘncia de infiltração medular clonal e de componente M no sangue (conceito de sCR nĂŁo inclui pesquisa de doença residual mĂnima por imunofenotipagem ou NGS, consideradas mais sensĂveis). A mediana de tempo para atingir resposta foi de 30 dias. A mediana de sobrevida foi 11 meses (IC 95% 10.3 a 11.4) para todos os respondedores e 19 meses para os pacientes com sCR.
No entanto, a toxicidade do tratamento foi importante. Dentre os pacientes tratados, 85% apresentaram sĂndrome de liberação de citocinas (CRS, do inglĂȘs Cytokine Release Syndrome), uma complicação comum dessa terapia. A CRS Ă© caracterizada por uma hiperativação do sistema imunolĂłgico relacionada Ă ativação e proliferação das cĂ©lulas CAR-T, resultando na liberação de citocinas prĂł-inflamatĂłrias e ativação macrofĂĄgica. Clinicamente manifesta-se em um espectro, de graus leves semelhantes a um quadro gripal atĂ© quadros graves com sĂndrome de disfunção multiorgĂąnica e risco iminente de vida. O tratamento Ă© feito com corticoide e tocilizumabe, um anticorpo anti receptor da IL6. Segundo os autores, os quadros graves corresponderam a 9% nesse estudo, com um Ăłbito. AlĂ©m disso, foi descrita sĂndrome de ativação macrofĂĄgica secundĂĄria Ă hiperativação imune como causa do Ăłbito de um paciente, e fator contribuinte para outro Ăłbito, por aspergilose broncopulmonar.
Uma segunda complicação da terapia CAR-T Ă© a neurotoxicidade, caracterizada tambĂ©m por sintomas variados. Podem ocorrer casos leves, com tremores, cefaleia e irritabilidade; atĂ© casos mais graves com convulsĂ”es, edema cerebral, confusĂŁo mental, coma e Ăłbito. 28% dos pacientes apresentaram quadro neurolĂłgicos, sendo 4% deles graves. Finalmente, as citopenias, caracterizadas pelas baixas contagens de hemĂĄcias, plaquetas e leucĂłcitos no sangue perifĂ©rico, sĂŁo bem descritas como complicação da terapia CAR-T. Nesse estudo, 41% e 49% dos pacientes apresentaram neutropenia e trombocitopenia grave e prolongada, respectivamente. TrĂȘs pacientes foram submetidos a transplantes de medula para reconstituição hematolĂłgica e dois deles morreram apĂłs o procedimento. No total, a taxa de eventos adversos fatais foi de 6%.
A aprovação do ide-cel vem acompanhada de questĂ”es importantes a serem respondidas, e algumas delas jĂĄ estĂŁo em estudos clĂnicos. Por exemplo, qual seria o melhor momento para indicação da terapia, e se o uso mais precoce poderia aumentar a sobrevida e reduzir a toxicidade. A descrição de biomarcadores que auxiliam na predição de resposta ao tratamento tambĂ©m Ă© fundamental. ConstruçÔes de CAR-T com função otimizada ou alvos biespecĂficos, e terapias de modulação do microambiente associadas Ă terapia CAR-T visam aumentar a eficiĂȘncia na eliminação tumoral, assim como inibidores de protease que impedem a clivagem do BCMA da membrana celular. A evolução das tĂ©cnicas de construção dos linfĂłcitos CAR-T e a possibilidade de produção de produtos off-the-shelf devem ajudar a reduzir os custos e aumentar a acessibilidade, mas o sucesso dessa terapia depende fundamentalmente da sua capacidade de compor uma estratĂ©gia curativa para o mieloma mĂșltiplo.
Embora a aprovação do Abcema seja mais um marco na mudança de paradigma ocorrida nos Ășltimos anos no tratamento das neoplasias hematolĂłgicas, a anĂĄlise dos resultados demanda cautela. Em primeiro lugar, trata-se de taxas de resposta e sobrevida aceitĂĄveis diante da população de prognĂłstico reservado do estudo, porĂ©m ainda distantes de um potencial curativo. A toxicidade Ă© alta e tambĂ©m somente justificĂĄvel em pacientes com expectativa de vida curta â como comparação, o transplante autĂłlogo para mieloma mĂșltiplo tem mortalidade inferior a 1%. Com anĂĄlise desses fatores, o custo-efetividade do ide-cel Ă© colocado em xeque, uma vez que, por analogia Ă s terapias CAR-T previamente aprovadas, espera-se um custo bastante elevado. Dentro de uma perspectiva de tratamento paliativo, onde metade dos pacientes tratados nĂŁo atinge 1 ano de sobrevida livre de progressĂŁo, hĂĄ que se considerar o fator econĂŽmico como determinante de acesso bastante restrito a essa terapia, com intensificação dos contrastes na desigualdade de assistĂȘncia Ă saĂșde.
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