Uma característica fundamental do sistema imune adaptativo é a capacidade de gerar uma resposta específica, eficiente e capaz de “lembrar” e responder rapidamente quando exposto novamente ao mesmo antígeno. Essa qualidade de “lembrar” de antígenos é chamada de “memória imunológica” e a geração dela conta com diferentes etapas e células do sistema imune, desde células dendríticas a linfócitos T e B. Os linfócitos T tem importante papel na geração e manutenção dessa memória, sendo descritos vários subtipos com diferentes funções e que podem ser identificados e classificados através da combinação de diferentes marcadores.
Apesar do avanço do conhecimento sobre as etapas que levam à geração da memória celular, ainda não há um consenso sobre o processo que leva os linfócitos T a se tornarem células de memória. Assim, foram propostos diferentes modelos de diferenciação, sendo o mais difundido e aceito o chamado “modelo de diferenciação linear”, que propõe que após recrutamento e proliferação das células T, uma pequena fração de células se diferencia para as células de memória, gerando as células T de memória central (TCM), células T efetoras de memória (TEM) ou células T residentes de memória (TRM). Já o “modelo de diferenciação progressiva” sugere que as células T de memória são derivadas diretamente de células T naive, sendo que as células que recebem um sinal fraco se diferenciam em células de memória, enquanto as células que recebem um sinal forte se diferenciam em células efetoras (Revisado por Ganusov, 2007).
Mais recentemente, com os avanços da citometria de fluxo e análises de célula única, foi descoberto um novo subtipo de células T, as células tronco de memória (no inglês – stem cell memory). Essas células possuem fenótipo semelhante ao de linfócitos naive, entretanto expressam grandes quantidades de marcadores de células-tronco e também de memória. Além disso, as características funcionais desse grupo de células são muito semelhantes às de células-tronco, pois elas são capazes de se autorrenovar e também de reconstituir todo o espectro de subconjuntos de células T efetoras e de memória, o que evidencia a importância dessas células na memória imunológica.
Um estudo publicado em 2020 no periódico Nature Immunology analisou as populações de linfócitos T encontradas no sangue periférico de doadores saudáveis utilizando RNA-seq. Lugli e colaboradores conseguiram distinguir, através da expressão gênica, 14 clusters diferentes, entre eles quatro subpopulações principais de células T CD8 + de memória. Para confirmar esses dados a nível de proteína, os autores projetaram um painel de citometria de fluxo de alta dimensão com marcadores para exaustão, memória e ativação. Eles observaram que o conjunto de células CCR7+GZMK- expressavam os marcadores LEF1, CD27, CD28 e CD127 e não expressavam moléculas efetoras, marcadores de ativação e receptores inibitórios. Já as células CCR7+GMZK+ expressaram níveis intermediários de LEF1 juntamente com PD-1 e TIGIT, marcadores altamente expressos no processo de exaustão celular, e que não foram detectados na análise de RNA-seq. Além disso, a população CCR7+GMZK+ tinha uma expressão variável de CD45RO, o que em conjunto com dados de RNA-seq sugerem que essas células são entidades destintas na diferenciação inicial de linfócitos T de memória CD8+, identificadas como células tronco de memória.
A partir da correlação entre as análises de RNA-seq e citometria de fluxo eles observaram que essas populações de células tronco de memória podiam ser diferenciadas através da expressão de TIGIT e PD-1. Então, a partir da expressão desses dois marcadores, eles denominaram as células tronco positivas para PD-1 e TIGIT como progenitoras exaustas (TPEX - progenitor exhausted T cells) enquanto as células do grupo negativo para esses dois marcadores foram denominadas como semelhantes a células tronco (TSTEM – stem-like).
A fim de avaliar a capacidade funcional dessas células, eles estimularam as TSTEM e TPEX de forma dependente do TCR e via independente de TCR e os resultados mostraram que as células TSTEM produziram mais citocinas como IL-2 e TNF do que as TPEX. Além disso, realizaram protocolos de transferência adotiva das TPEX, TSTEM e TEX para camundongos NGS e verificaram que as células TSTEM conseguiram proliferar mais rapidamente no sangue periférico e repovoar o baço de forma mais eficiente quando comparadas com células TPEX, o que demonstra que as TSTEM são funcionalmente superiores às TPEX.
Outro importante fator nas decisões sobre o destino das células T é a regulação epigenética, que pode ser analisada através da acessibilidade da cromatina no genoma, utilizando a técnica de ATAC-seq. Dada essa importância, os autores utilizaram essa técnica para investigar o perfil epigenético das TPEX e TSTEM. As análises revelaram que que as células TSTEM e TPEX eram globalmente semelhantes, embora as células TSTEM tivessem características semelhantes às de células naive, enquanto as células TPEX possuíam características compartilhadas com as T efetoras. Além disso, genes associados à disfunção de células T como TOX , TIGIT , PDCD1 , NFATC2 e MAF, e de diferenciação terminal como ZEB2 e BATFI, estavam mais acessíveis nas TPEX. Já as células TSTEM tinham mais acessibilidade à cromatina em genes associados à memória das células T como LEF1 , SELL , CCR7 , BACH2 e SATB1.
Atualmente, sabe-se que a disfunção e exaustão das células T CD8 + são produtos de uma resposta persistente à estimulação antigênica via TCR. Portanto, os autores hipotetizaram que as infecções virais agudas gerariam preferencialmente células TSTEM específicas para o antígeno, enquanto as infecções virais crônicas gerariam preferencialmente células TPEX. Assim, eles compararam os dados de expressão gênica disponíveis publicamente de indivíduos vacinados para febre amarela com os dados prévios de RNA-seq obtidos pelo grupo. A análise revelou que as células especificas para febre amarela após a vacinação foram transcricionalmente relacionadas com células TSTEM, mas não células TPEX.
Para aprofundar esses achados, eles investigaram as características fenotípicas das células T de memória CD8 + específicas para vírus agudos (vírus influenza ou rotavírus) ou crônicos (citomegalovírus ou vírus Epstein-Barr) em doadores saudáveis e indivíduos HIV+. Os marcadores de assinatura de células TPEX, como PD-1, TIGIT, GZMK, GZMA e CCR5, foram expressos em níveis mais elevados entre células T CD8 + específicas para os vírus que causam infecções crônicas do que entre células específicas para as infecções agudas.
Esses dados mostraram que as células TPEX foram clonal, epigeneticamente e transcricionalmente distintas das TSTEM, o que sugere um ponto de ramificação no compartimento de memória inicial associado com o evento de reconhecimento primário do antígeno. Isso é evidenciado quando a persistente estimulação antigênica, ilustrada pelas infecções crônicas, está preferencialmente associada ao desenvolvimento de células TPEX. Com base nesses resultados descritos, eles propuseram um novo modelo de diferenciação de células T. Nesse modelo, esquematizado na Figura 1, as células TPEX assumem uma assinatura do tipo disfuncional após ativação e diferenciação efetora e que quando estimulada novamente irá gerar células com características de exaustão. Já as células TSTEM permanecem multipotentes e relativamente resistentes à exaustão, o que resulta numa funcionalidade aprimorada e imunidade protetora in vivo, pois quando em contato novamente com antígeno há geração de uma progênie funcional.
Figura 1. Modelo esquemático proposto pelo autor que mostra as origens e trajetórias de diferenciação das células TSTEM e TPEX.
Apesar desses dados, ainda são necessários mais estudos para identificar os mecanismos moleculares e epigenéticos envolvidos nessa dicotomia que leva à geração de células TPEX e TSTEM. Aqui no blog já trouxemos um estudo que mostra como o fator de transcrição BACH2 parece ser um importante agente no estabelecimento de um perfil epigenético das células T progenitoras exaustas.
Outro desdobramento do reconhecimento e estudo dessas células tronco de memória é o papel desta população celular em pacientes com infecções virais não controladas e, principalmente, com câncer. Devido às suas características únicas, essas células podem ter papel fundamental na geração de memória na terapia com CAR-T e também podem evidenciar novos alvos para intervenções terapêuticas, que podem inibir ou então reverter o processo de exaustão celular.
Referências
Galletti, G., De Simone, G., Mazza, E.M.C. et al. Two subsets of stem-like CD8+ memory T cell progenitors with distinct fate commitments in humans. Nat Immunol 21, 1552–1562 (2020). https://doi.org/10.1038/s41590-020-0791-5
Discriminating between Different Pathways of Memory CD8+ T Cell Differentiation
Vitaly V. Ganusov – J Immunol October 15, 2007, 179 (8) 5006-5013; DOI: https://doi.org/10.4049/jimmunol.179.8.5006
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