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Terapias gênicas – quando nem tudo são flores.

- Por Luiza Abdo A ciência e tecnologia têm avançado de forma exponencial nos últimos anos. No ramo das terapias gênicas não é diferente. Cada dia mais ouvimos falar de edição genética, inserção ou deleção de genes, de ferramentas como CRISPRs, vetores virais, transposons e vários outros conceitos relacionados a esse tema. No geral, esses termos estão relacionados com notícias positivas que utilizam palavras como cura, esperança e até revolução. Posto isso, será que não houve percalços nessa trajetória tão promissora? Já adianto que sim. Nesse texto, iremos retratar um trabalho recente que demonstrou que alguns pacientes tratados com células T modificadas para expressar Receptores Quiméricos de Antígenos (CARs) desenvolveram linfoma (MICKLETHWAITE et al., 2021).

Em um breve histórico, o caso mais famoso de complicações em terapias gênicas foi o do jovem Jesse Gelsinger que faleceu aos 20 anos de idade em 1999. Jesse tinha uma doença denominada Deficiência da Ornitina Transcarbamilase (OTC), que é uma deficiência da enzima ornitina transcarbamilase que compromete a eliminação da amônia do organismo. No geral, essa síndrome é identificada logo após ao nascimento e o bebê pode morrer em poucos dias. Contudo, Jesse tinha uma forma mais branda da doença e, com dieta e remédios, conseguia se manter relativamente estável. Em paralelo a isso, pesquisadores da Universidade da Pensilvânia desenvolveram um adenovírus para carrear uma cópia saudável do gene OTX – causador da OTC. O objetivo era que esse vírus inofensivo fosse injetado no paciente e infectasse as células hepáticas para levar o gene OTX às células e auxiliar seu organismo eliminar substâncias tóxicas, espelhando os dados que haviam sido realizados em modelos animais. O campo de terapias gênicas ainda estava no início quando Jesse aceitou participar do teste clínico. Ele foi o 18º paciente a receber o adenovírus. Logo após o tratamento, Jesse teve uma intensa resposta inflamatória e em 4 dias sua morte cerebral foi declarada. Após a morte desse rapaz, os estudos de terapias gênicas cessaram por um período nos EUA, e até hoje esse caso é citado devido às diversas irregularidades ocorridas, incluindo que as condições de Jesse o deixava inapto para sua inclusão nesse estudo (“The Death of Jesse Gelsinger, 20 Years Later”, 2019).

Outro caso interessante que ocorreu no início das terapias gênicas foi o desenvolvimento de leucemia em pacientes tratados com retrovírus para prover uma cópia saudável do gene causador da doença imunodeficiência combinada grave (SCID, do inglês severe combined immunodeficiency) (FISCHER; HACEIN-BEY-ABINA; CAVAZZANA-CALVO, 2010). No total, 20 pacientes com a clássica SCID-X1 foram selecionados. Essa doença é caracterizada pela mutação no gene que codifica a subunidade gama de interleucina-2 (IL2RG). Essa subunidade é importante para diversos receptores de citocinas, como IL-2, IL-4, IL -7, IL-9, IL-15 e IL-21, e a sua deficiência afeta drasticamente a produção de células T e NK maduras, levando o paciente à uma imunodeficiência grave com sobrevida de poucos meses ou até dias. Esse estudo basicamente consistiu em retirar as células tronco hematopoiéticas CD34+ do próprio paciente e transduzir de maneira ex vivo com um retrovírus que é capaz de inserir o gene IL2RG. Meses após o tratamento, 5 dos 20 pacientes desenvolveram leucemia de células T, no qual levou um paciente ao óbito. Em todos os casos, houve expressões desreguladas de alguns oncogenes, principalmente o LMO2, devido à integração do vírus nessas regiões. Esse acontecimento levou uma melhor compreensão do perfil de integração desse vetor viral e possíveis modificações na arquitetura do vírus para deixá-lo mais seguro. É importante destacar, que embora tenha ocorrido leucemia em alguns pacientes, 17 dos 20 pacientes tratados tiveram a imunodeficiência corrigida, mesmo 20 anos depois. Apesar da intercorrência, esse ensaio clínico foi de extrema importância para a progressão dos estudos na área de terapias gênicas.

Dito isso, adversidades ainda podem ocorrer. Recentemente, foi publicado um trabalho relatando que pacientes com tumores derivados de células B e tratados com células T CAR+ desenvolveram novas massas tumorais alguns meses depois – tumores estes derivados de células T CD3+ e CAR+. Em um ensaio clínico denominado CARTELL realizado na Austrália, os pesquisadores selecionaram 8 pacientes para o tratamento com as células T CAR anti-CD19, modificadas com uma ferramenta de integração gênica baseada em transposon chamada PiggyBac (PB) – um dos primeiros ensaios clínicos publicados utilizando essa ferramenta. Em um texto anterior do blog, explicamos como funciona um sistema similar de transposon Sleeping Beauty (SB) (RIBEIRO, 2020). O sistema PB, igual ao SB, necessita de um transposon (que pode ser na forma de plasmídeo e que contém o transgene de interesse, nesse caso o CAR) e uma transposase (enzima que irá retirar o transgene do transposon e inserir no DNA alvo). O PB demonstrou ser uma ferramenta eficiente de modificação genética de células e mais uma opção de vetores não virais para o aperfeiçoamento de terapias gênicas.

Contudo, dos 8 pacientes recrutados para o ensaio, 2 desenvolveram tumores derivados das células modificadas geneticamente, progredindo ao óbito. Na tentativa de entender o motivo dessa transformação, os pesquisadores fizeram várias análises nos tumores formados. Em resumo, não houve inserção do CAR em possíveis oncogenes. Além disso, não ocorreu nenhum padrão de inserção aberrante do transgene em regiões intronicas, intergenes ou promotores, dentre outras regiões do genoma analisadas, quando comparado aos doadores que não desenvolveram tumores derivados de células T CAR+. Além disso, essas células CAR-T que geraram tumores não tiveram uma boa resposta contra células CD19+ em experimentos in vitro, concluindo que a sua proliferação desordenada não se deveu a uma ativação massiva das células que responderiam o tumor. Foram analisadas também possíveis variações estruturais envolvendo o PB no genoma, mas as análises não se mostraram conclusivas. Dito isso, não foi possível traçar uma trajetória clara que tenha levado 2 pacientes em 8 a desenvolverem tumores com células CAR-T. A hipótese sugerida pelos autores seria que as múltiplas alterações genéticas levaram à disfunção na proliferação dessas células. Notou-se que algumas regiões a jusante dos sítios em que o CAR foi inserido tiveram mudanças transcricionais. Outro ponto levantado seria o alto número de cópias do transgene em cada célula, que pode ter gerado um desequilibro na homeostasia celular.

Por fim, apesar desses casos relatados serem intrigantes, é fundamental esclarecer que não podemos invalidar todo caminho percorrido até aqui. É importante estudar cada caso e verificar se os critérios científicos foram seguidos de acordo com os regulamentos vigentes – o que não foi o caso do tratamento ao que foi submetido o jovem Jesse. Fundamental também é tentar entender o que levou à falha e buscar a correção – como no caso dos pacientes SCIDs. O uso de novas ferramentas e tecnologias pode sim ter efeitos não esperados, e essa é uma das possíveis consequências quando se inova. Assim, é importante não esquecermos desses entraves e aprendermos como evitá-los da melhor forma possível.




1 - Figura esquemática da imunoterapia com células T CAR+



Referências:

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