Os glicoconjugados se caracterizam por um grande número de açúcares naturais que podem ser combinados com lipídios e/ou proteínas, originando uma ampla variedade de estruturas exclusivas. O processo pós-traducional de glicosilação é uma das mais frequentes modificações em proteínas, sendo gerado a partir da ligação covalente de monossacarídeos à resíduos de asparagina ou serina/treonina e ocorre principalmente no aparelho de Golgi (1). A glicosilação de proteínas inclui principalmente a adição de glicanos ligados a N ou O, de glicanos fosforilados, de glicosaminoglicanos e de âncoras de glicosilfosfatidilinositol (GPI) que modulam sua função. A ação enzimática de glicosiltransferases e glicosidases promovem a formação das estruturas de carboidratos por meio de uma série de etapas. Essas etapas são reguladas por fatores como, disponibilidade de substrato, atividade enzimática, níveis de transcrição gênica e localização da enzima no interior das organelas (figura 1)(2).
Em condições normais, as estruturas centrais sofrem processamento extensivo por várias glicosiltransferases, que equilibram a maturação de glicoproteínas nascentes em direção a N-glicanos com alta quantidade de manose, híbridos ou ramificados complexos (3). Entretanto, em células tumorais é descrita a ocorrência de glicosilações aberrantes, que se caracterizam por um revestimento de glicano extracelular profundamente modificado em comparação com as células saudáveis. Dados da literatura têm descrito que este revestimento anormal composto de açucares em células tumorais funciona como um verdadeiro escudo protetor. Esse “campo de força” é capaz de impedir e subverter as respostas antitumorais,seja mascarando o reconhecimento de neoepítopos por linfócitos T e/ou interferindo na função efetora de células imunes (3 e 4).
De fato, proteínas glicosiladas originam diferentes tipos de epítopos antigênicos a partir de glicopeptídeos que são definidos por anticorpos que reconhecem unidades de oligossacarídeos e resíduos de aminoácidos adjacentes. Sendo assim, a glicosilação de um ou mais aminoácidos flanqueados por regiões glicosiladas pode mascarar o sítio de reconhecimento de anticorpos, como é observado na hemaglutinina do vírus da gripe, na proteína mucina 1 (MUC1) e, recentemente, no ligante de morte programada 1 (PD-L1) (5, 6 e 7).
Em outra perspectiva, o padrão anormal de glicosilação de proteínas de superfície de células tumorais poderia favorecer o surgimento de marcadores específicos de tumores, sendo convenientemente explorados para estratégias imunoterapêuticas, incluindo a utilização de linfócitos T expressando CARs (Receptores Quiméricos de Antígeno). Embora a terapia com células CART (linfócitos T CAR) até o momento tenha obtido mais sucesso em tumores hematológicos do que em tumores sólidos, células CAR-T anti-CD44v6 têm demonstrado grande eficácia em modelos de xenoenxerto de pulmão e carcinoma de ovário, abrindo caminho para uma exploração mais ampla para esses tumores (8). Sabe-se que a proteína de superfície CD44v6 é fortemente glicosilada, uma característica compartilhada com vários antígenos-alvo de células CAR-T de tumores sólidos, incluindo o antígeno carcinoembrionário (CEA), que está atualmente sob investigação em pacientes com carcinoma pancreático primário ou metastático (9)
Buscando entender os mecanismos de reconhecimento de antígenos glicosilados pelas células CAR-T, Beatrice Greco e colaboradores geraram um modelo de câncer pâncreatico utilizando células tumorais deficientes em N-glicosilação. Nesse modelo, foi realizado o nocaute do gene que codifica a glicosiltransferase MGAT5, enzima responsável por catalisar a síntese de estruturas de N-glicanos ramificadas nessas células. Tendo como alvo os antígenos CD44v6 e CEA, o grupo de pesquisadores avaliou o impacto dos N-glicanos característico de tumores frente à resposta à terapia com células CAR-T (9). De fato, a remoção da N-glicosilação mediada pela MGAT5 potencializou a sinapse imunológica, potencializando a sinalização do receptor CAR na interação com a célula alvo.
Adicionalmente, os pesquisadores italianos incluíram na terapia com células CAR-T a molécula 2DG (análogo de glicose/manose 2-desoxi-d-glicose), conhecida por sua capacidade de se acumular preferencialmente em tumores em comparação as células saudáveis, inibindo a N-glicosilação (10). O tratamento combinado com o análogo de glicose 2DG aumentou a capacidade efetora tanto de células CAR-T anti-CD44v6 quanto anti-CEA, promovendo a sensibilização dos tumores pancreáticos ao tratamento e reduzindo o perfil fenotípico de exaustão do infiltrado de linfócitos T(figura 2)(10).
A conclusão do trabalho aponta que N-glicanos extracelulares parecem ser um importante componente dos mecanismos supressores de tumores às respostas imunes. O perfil de glicosilação aberrante de células tumorais favorece também maior resistência ao tratamento por meio da indução de um perfil de exaustão nas células CAR-T. Os autores demonstraram que a combinação entre células CAR-T e a molécula 2DG no contexto de tumores sólidos altamente glicosilados pode trazer novas perspectivas de aplicações terapêuticas desta modalidade de imunoterapia.
Bibliografia
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8. M. Casucci, B. Nicolis di Robilant, L. Falcone, B. Camisa, M. Norelli, P. Genovese, B. Gentner, F. Gullotta, M. Ponzoni, M. Bernardi, M. Marcatti, A. Saudemont, C. Bordignon, B. Savoldo, F. Ciceri, L. Naldini, G. Dotti, C. Bonini, A. Bondanza, CD44v6-targeted T cells mediate potent antitumor effects against acute myeloid leukemia and multiple myeloma. Blood 122, 3461–3472 (2013).
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