- Por Brenno Sessa -
A modificação de linfócitos para expressarem receptores quiméricos de antígeno (CARs) tem ganhado espaço dentre as terapias oncológicas devido aos resultados promissores obtidos no tratamento de tumores. Parte considerável do potencial dessa terapia vem de sua flexibilidade, uma vez que CARs podem ser desenhados para diversos alvos.
Os primeiros CARs gerados eram essencialmente compostos por uma região extracelular capaz de reconhecer um antígeno, uma região transmembrana e a região intracelular capaz de ativar o linfócito. As versões mais comuns dos CARs usam uma porção de sinalização advinda da cadeia zeta do complexo CD3 de sinalização do TCR, embora outras configurações com a cadeia épsilon do CD3 e a cadeia gama do receptor de IgE tenham sido testadas (Eshhar, Waks e Gross, 1993). As cadeias zeta realizam a transdução de sinal através de domínios chamados ITAMs (immunoreceptor tyrosine-based activation motif), sequências de aminoácidos conservadas entre diferentes receptores do sistema imune. A presença dessas sequências no CAR permite que esta molécula simule o primeiro sinal de ativação do linfócito T, originalmente vindo do reconhecimento do antígeno pelo TCR.
Uma vez que o receptor reconhece seu parceiro, os ITAMs são expostos, podendo então sofrer a ação de tirosina cinases, que farão a adição de um grupo fosfato em de uma a duas tirosinas do ITAM. Essas fosforilações permitem que outras proteínas se acoplem ao ITAM, sendo recrutadas para a proximidade da membrana plasmática, onde interagirão com outras moléculas, desencadeando a via de sinalização do receptor em questão. No caso do complexo do TCR, são encontrados dez ITAMs, dos quais três estão em cada uma das duas cadeias zeta que fazem parte do complexo, como ilustrado na figura 1.
Figura 1: Simplificação da via de sinalização do TCR. A fosforilação dos ITAMs no complexo
CD3 por Lck permite o recrutamento de ZAP-70 para o TCR, que será ativada por Lck e em conjunto com essa, realização a ativação de outras moléculas, destrinchando a sinalização do TCR em várias vias.
Os domínios coestimulatórios usados na construção dos CARs se provaram uma questão importante no tratamento, sendo relevantes não apenas o número de domínios coestimulatórios, mas quais domínios estão sendo usados. Essa escolha se reflete muitas vezes na capacidade proliferativa das células e no perfil de células resultante após a ativação, influenciando, por exemplo, na capacidade de eliminação do tumor a curto prazo e na formação de células de memória (com uma função de proteção a longo prazo).
Figura 2: Diferentes gerações de CARs portando seus domínios intracelulares derivados de moléculas do sistema imune.
Enquanto nesse tipo de discussão normalmente são postos em pauta quais domínios coestimulatórios são de maior interesse contra um tipo de tumor, em um trabalho produzido pelo grupo de Michel Sadelain temos uma abordagem um pouco diferente sobre como interferir nos perfis celulares induzidos pela ativação pelo CAR. Experimentando diferentes variações da cadeia zeta, o trabalho nos mostra que os efeitos na proliferação e diferenciação das células CAR-T não são uma consequência exclusiva dos domínios coestimulatórios, mas que podem ser moduladas também através de deleções e mutações entre os três ITAMs presentes na cadeia zeta. Sinalizações atenuadas, segundo esta hipótese, seriam capazes de gerar perfis celulares diferentes.
Figura 3: Diferentes perfis são favorecidos de acordo com as mutações na cadeia zeta no CAR. Na ilustração temos os três ITAMs da cadeia zeta presente no CAR, e três versões da cadeia zeta, selvagem ou portando mutações que inativam dois de seus ITAMs. Mutações nos dois primeiros ITAMs da cadeia zeta levam a um perfil fenotípico mais naive, enquanto mutações nos dois últimos ITAMs levam a um perfil mais voltado para a memória, tendo como base a cadeia zeta não mutada.
De acordo com o trabalho, mutações que evitam a fosforilação do segundo e terceiro ITAM da cadeia zeta do CAR levaram a uma maior redução da carga tumoral em modelos in vivo. A eliminação completa do segundo e terceiro ITAMs, assim como no CAR com tais regiões mutadas, apresentou melhor eliminação do tumor. Talvez ainda mais interessante seja o fato de a substituição do primeiro ITAM pelo terceiro ter levado a resultados similares. Esse tipo de resultado leva a crer que a posição mais justaposta à membrana do ITAM na molécula é mais valiosa para o funcionamento do CAR que qual dos ITAMs da cadeia zeta está sendo usado.
Além da melhor eliminação de tumores em seu primeiro encontro, os linfócitos também performaram melhor em experimentos de redesafio com o tumor. Esse tipo de resultado se relaciona muito bem com os perfis de memória induzidos pela ativação do CAR com apenas um ITAM, e ajuda evitar a reincidência do tumor.
Além de interessante do ponto de vista de tentar melhorar um receptor já utilizado clinicamente, o trabalho também traz uma ideia pouco explorada. As construções dos CARs via de regra se baseiam nos domínios de moléculas do sistema imune que, uma vez embutidas em um CAR, estão fora do seu contexto fisiológico. Por vezes, atenuações da ativação ajudam a calibrar a função da célula, tornando o resultado mais próximo do desejado, atuando como ajuste fino da função das células CAR-T. Às vezes menos é mais.
Referências:
Feucht, J., Sun, J., Eyquem, J., Ho, Y., Zhao, Z., Leibold, J., Dobrin, A., Cabriolu, A., Hamieh, M., Sadelain, M. (2019). Calibration of CAR activation potential directs alternative T cell fates and therapeutic potency. Nature Medicine, Vol. 25, pp.82-88.
Eshhar, Z., Waks, T., and Gross, G. (1993). Specific activation and targeting of cytotoxic
lymphocytes through chimeric single chains consisting of antibody-binding domains and the
FcɛRIgamma or CD3zeta subunits of of the immunoglobulin and T-cell receptors. Proc Natl
Acad Sci U S A, Vol. 90, pp.720-724.
Sadelain, M., Brentjens, R., Rivière, I. (2013). The Basic Principles of Chimeric Antigen Receptor Design. Cancer Discovery, Vol. 3, Issue 4, pp.388-398.
Acuto, O., Cantrell, D. (2000). T Cell Activation and the Cytoskeleton. Annual Review of
Immunology, Vol. 18, pp.165-184.
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